5.26.2018

CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA


Uma antiga piada conta que, um dia, os órgãos do corpo começaram a discutir qual deles seria o mais importante. O coração enalteceu o seu trabalho de bombear o sangue; os rins elogiaram o seu papel de filtração e assim por diante. O cu não disse nada, apenas trancou; parou de cagar. E, uma semana depois, já com todos os órgãos entrando em colapso, os outros reconheceram a importância do cu para a sobrevivência do corpo.

Essa piada me volta à mente, com a greve dos caminhoneiros. Longe de mim, chamar o caminhoneiro de cu da sociedade brasileira; agora mesmo, estamos vendo a importância da categoria. Mas a analogia é que, no dia a dia, nunca pensamos na consequência de uma greve dessas, em um País onde 90% das cargas são transportadas por caminhões e estradas.

Esta é a crônica de uma morte anunciada. Apesar de termos muitos rios e um litoral extenso, jamais nos preocupamos em formar uma rede de transportes náuticos; ao invés de investirmos no transporte ferroviário, fomos, pouco a pouco, sucateando as nossas ferrovias, até que poucas restam, a maioria sem condições de operar plenamente.
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É mais um retrato do desgoverno do Brasil. Muitas outras perspectivas sombrias se desenham no horizonte, com sintomas evidentes, como os apagões elétricos frequentes e a escalada da violência, com o crime consolidando-se como poder paralelo, com atentados e toques de recolher. Até mesmo a falta de água potável já nos acena, por enquanto ainda à distância.

E o que estamos fazendo, para corrigir tudo isto? Nada de efetivo. Somos um povo que se divide entre partidos e ideologias; vamos para a rua (quando vamos!) gritar palavras de ordem e exaltar as qualidades de nossos líderes, os mesmos que têm levado o País ao caos. Organizamos manifestações, bloqueamos ruas, criticamos os políticos adversários... e voltamos para casa com a sensação ilusória do dever cumprido, enquanto as nuvens de merda crescem sobre as nossas cabeças.

É triste, mas é a realidade. Somos um povo passivo, onde cada um cuida do seu próprio umbigo e não sente senão as próprias hemorroidas; só quando o nosso cu sangra, é que procuramos gaze e absorventes... e um dia podemos não encontrá-los; afinal, as farmácias estão desabastecidas, com a greve dos caminhoneiros.

Não podemos culpá-los, entretanto; não podemos culpar a ninguém, senão a nós mesmos; à nossa própria inércia. Assistimos, hoje, a uma participação cada vez maior das Forças Armadas na vida do País, devido à nossa incapacidade como sociedade civil organizada.

E a cura não está nas armas; nunca esteve, em toda a história do mundo. As civilizações que mais floresceram, os povos mais felizes, os governos mais duradouros, não foram produtos de revoluções, mas de consenso; não foram gerados pela violência, mas pela paz e pelo bom-senso.

Estamos às vésperas de uma nova eleição. É mais uma oportunidade de darmos uma contribuição efetiva, escolhendo os candidatos não por partidos, mas pela competência. É claro que não vamos mudar tudo de uma vez, mas podemos começar a escolher melhor; e toda caminhada começa pelo primeiro passo.

É pela força das urnas, que podemos mudar o Brasil. E – quem sabe? – talvez evitar essa morte anunciada.