CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA
Uma antiga piada
conta que, um dia, os órgãos do corpo começaram a discutir qual deles seria o
mais importante. O coração enalteceu o seu trabalho de bombear o sangue; os
rins elogiaram o seu papel de filtração e assim por diante. O cu não disse
nada, apenas trancou; parou de cagar. E, uma semana depois, já com todos os
órgãos entrando em colapso, os outros reconheceram a importância do cu para a
sobrevivência do corpo.
Essa piada me volta à
mente, com a greve dos caminhoneiros. Longe de mim, chamar o caminhoneiro de cu
da sociedade brasileira; agora mesmo, estamos vendo a importância da categoria.
Mas a analogia é que, no dia a dia, nunca pensamos na consequência de uma greve
dessas, em um País onde 90% das cargas são transportadas por caminhões e estradas.
Esta é a crônica de
uma morte anunciada. Apesar de termos muitos rios e um litoral extenso, jamais
nos preocupamos em formar uma rede de transportes náuticos; ao invés de
investirmos no transporte ferroviário, fomos, pouco a pouco, sucateando as
nossas ferrovias, até que poucas restam, a maioria sem condições de operar
plenamente.
.
É mais um retrato do
desgoverno do Brasil. Muitas outras perspectivas sombrias se desenham no
horizonte, com sintomas evidentes, como os apagões elétricos frequentes e a
escalada da violência, com o crime consolidando-se como poder paralelo, com
atentados e toques de recolher. Até mesmo a falta de água potável já nos acena,
por enquanto ainda à distância.
E o que estamos
fazendo, para corrigir tudo isto? Nada de efetivo. Somos um povo que se divide
entre partidos e ideologias; vamos para a rua (quando vamos!) gritar palavras
de ordem e exaltar as qualidades de nossos líderes, os mesmos que têm levado o
País ao caos. Organizamos manifestações, bloqueamos ruas, criticamos os
políticos adversários... e voltamos para casa com a sensação ilusória do dever
cumprido, enquanto as nuvens de merda crescem sobre as nossas cabeças.
É triste, mas é a
realidade. Somos um povo passivo, onde cada um cuida do seu próprio umbigo e
não sente senão as próprias hemorroidas; só quando o nosso cu sangra, é que
procuramos gaze e absorventes... e um dia podemos não encontrá-los; afinal, as
farmácias estão desabastecidas, com a greve dos caminhoneiros.
Não podemos culpá-los,
entretanto; não podemos culpar a ninguém, senão a nós mesmos; à nossa própria
inércia. Assistimos, hoje, a uma participação cada vez maior das Forças Armadas
na vida do País, devido à nossa incapacidade como sociedade civil organizada.
E a cura não está nas
armas; nunca esteve, em toda a história do mundo. As civilizações que mais
floresceram, os povos mais felizes, os governos mais duradouros, não foram
produtos de revoluções, mas de consenso; não foram gerados pela violência, mas
pela paz e pelo bom-senso.
Estamos às vésperas de
uma nova eleição. É mais uma oportunidade de darmos uma contribuição efetiva,
escolhendo os candidatos não por partidos, mas pela competência. É claro que não vamos mudar
tudo de uma vez, mas podemos começar a escolher melhor; e toda caminhada começa
pelo primeiro passo.
É pela força das
urnas, que podemos mudar o Brasil. E – quem sabe? – talvez evitar essa morte
anunciada.