8.14.2006

O GRANDE KAZU

Gasta e maltratada, a cortina se abre. O velho atira a bomba de fumaça (uma das últimas, não pode se esquecer disto!) e caminha, na névoa colorida, para o centro do palco, entre os aplausos e assovios da meninada.

Cabelos e barbas brancos, vestindo uma túnica larga, o tradicional chapéu pontudo na cabeça, parece realmente um mago. É fácil alimentar os sonhos da criança; difícil, é manter os sonhos do adulto.

Do acanhado palco, os olhos do velho se deleitam com o entusiasmo das crianças; em algum lugar de sua mente, ele vê em cada uma o rosto de um dos seus filhos, brilhando na inocência de outrora, que a vida já levou.

É hora de convidar um dos pequenos, para subir ao palco; momentos de sonho e felicidade, que perdurarão em sua memória. O brilho dos refletores, o velho misterioso e imponente, o encanto da magia e a sensação de ter sido escolhido entre todos. Como é intensa e frágil a felicidade de uma criança!

Os olhinhos brilham; a menina, magra e mal vestida, segura o lenço de papel, para um novo truque. O grande Kazu repete os movimentos automaticamente, com a segurança da prática de anos.

Desde que Roberval Santos, funcionário público, se aposentara. Os filhos casados, a aposentadoria pequena, a mulher viva apenas em sua memória, mora sozinho, em acanhado apartamento da periferia. Respira as lembranças, sobrevive da saudade e sonha apenas sob a túnica gasta, quando empresta a sua pobre vida ao magnífico personagem que é o grande Kazu!

A grande imagem de papelão, que o reproduz em sua roupa mágica, então ainda nova, foi presente de um dos filhos. Ele faz questão de pendurá-la pessoalmente sobre o palco, antes de cada show; é a representação dos seus sonhos, um laço mágico que o liga à platéia.

Os aplausos e o entusiasmo das crianças o mantêm vivo. Gasta boa parte da aposentadoria minguada em artefatos de mágica, para os shows grátis que realiza em teatrinhos de segunda, alegrando as crianças pobres das escolas públicas É o custo que paga, para viver nos sonhos infantis. Quem saberia dizer quanto vale uma ilusão?

A menina corre para o velho. O grande Kazu se abaixa, acaricia o rostinho brilhante, oferece o rosto barbudo, para um beijo de admiração e amor. Ela desce do palco, levando nas mãos a rosa de papel que resultara do truque. Mais uma despesa, a compra de uma nova rosa; mas aquela flor barata ficará guardada no casebre humilde, entre as poucas roupas, transformada na materialização do sonho de uma tarde mágica.

O espetáculo continua; restam poucos truques a fazer, o material é muito pouco e diminui a cada dia. É com uma tristeza resignada que o velho vê o tempo passar, levando o grande Kazu: cada minuto que se vai afasta mais o sonho; traz de volta a realidade do quarto pequeno, que divide com uma solidão enorme.

O último número, o grand finale: a água derramada em uma caixa de papelão, que some misteriosamente, sem que uma única gota molhe a caixa; como somem os nossos momentos, tristes e felizes, sem que nada tenhamos aprendido com eles, a não ser que a saudade existe e os conservará vivos para sempre, em nossas recordações.

O grande Kazu mostra a caixa vazia e ergue a mão, com a jarra cheia de água. Começa a entornar a jarra; faz-se um silêncio dramático, quase palpável, denso como a expectativa das crianças. Aos poucos a água vai diminuindo, caindo no saco oculto sem molhar a caixa; como as nossas esperanças caem, gota a gota, no saco das desilusões.

Agora, ele mostra a jarra vazia e a caixa enxuta. Uma nova bomba de fumaça é jogada, e a névoa colorida envolve a imagem imponente do grande Kazu; a cortina se fecha, entre os aplausos entusiasmados e vibrantes.

A dor lacerante no peito; como a queimadura de um fogo sagrado, que se espalha por um segundo infinito. Os joelhos se dobram, as mãos se abrem convulsivamente; a jarra e a caixa caem, seguidas pelo corpo do velho e pelo saco cheio de água, que começa a se derramar pelo chão. Do outro lado da cortina, as crianças continuam a gritar, entusiasmadas; o pano gasto oculta a presença da morte, que veio ao fim do show, como se também quisesse aplaudir o grande mago.

Agora, a dor passou. Uma paz infinita o envolve, cancelando as lembranças, apagando as saudades, afastando a solidão; parando o tempo, ao eliminar a vida. Com um suspiro, quase de alívio, o velho morre.

Acima do palco, mais imponente do que nunca, a imagem do Grande Kazu parece flutuar, livre das cordas que a prendem, pronta para elevar-se ao céu.

Viva para sempre, no imaginário das crianças...

20 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Diferente do formato normal, Flávio, mas muito bonito!

10:44 PM  
Blogger Flávio said...

Obrigado, Júnior... eu gosto um bocado dessa história!

12:19 AM  
Anonymous Anônimo said...

Este conto é melancólico, mas muito lindo. O Grande Kazu viveu por seus minutos de sonhos e glórias. Porque ao longo de sua vida, pequenas "mortes" foram-lhe tirando o brilho e a alegria de viver.

3:16 AM  
Anonymous Anônimo said...

Você sabe que está ajudando a mudar e construir nosso "Projeto Experimento: Um Blog Metalinguístico"? Pois eu vim te avisar que sim, e te agradecer... Obrigada!

A Outra

4:04 AM  
Anonymous Anônimo said...

Bacana esse conto heim Flávião eu não conhecia não.

7:01 AM  
Blogger Flávio said...

anônimo, e apesar destas mortes, os sonhos continuaram vivos... pura mágica! :)

7:59 AM  
Blogger Flávio said...

a outra, disponha sempre, no que pudermos ajudar!

8:00 AM  
Blogger Flávio said...

Júnior, eu quase diria que esse é um texto recorrente. :) Fiz para o extinto Armazém 3, mas de vez em quando republico; acho importante que um velho ainda sonhe como as crianças... ;)

8:01 AM  
Anonymous Anônimo said...

O texto esta fantastico mas morrer na frente das criancas , Cruz,credo!!

8:45 AM  
Blogger Flávio said...

Magui, mas note o cuidado que eu tive, de botar a cortina no meio, viu? Precisamos preservar a infância, sempre! ;)

8:55 AM  
Blogger Luma Rosa said...

Que grande surpresa!!
Beijus

9:43 AM  
Blogger Flávio said...

Luma, fiquei curioso pra saber que surpresa, mas espero que tenha sido agradável; assim, vc volta! :) Bjs.

10:04 AM  
Anonymous Anônimo said...

Lindo! Emocionante!
Beijos,
Vanessa

1:03 PM  
Blogger Flávio said...

Vane, obrigado! Gostei dos adjetivos, viu? Mas acredita que, apesar de ter escrito este conto, eu mesmo derramei uma lágrima pelo grande Kazu? :)

4:45 PM  
Anonymous Anônimo said...

Professor, acho que eu já li este conto, mas isto não tira nada da sua beleza.

6:20 PM  
Blogger Flávio said...

Rappha, é possível, sim; mas o principal é que vc gostou! :)

12:29 AM  
Blogger Unknown said...

Lindo Flávio!

Quando comecei a ler tive a impressão que você tinha ido a esse espetáculo, mas pelos comentários foi você que escreveu esse conto!

Quando crescer quero ser igual a você :)

7:14 AM  
Blogger Flávio said...

Obrigado, Márcia... mas não queira, não! Vc ia gastar uma nota de lipoaspiração e tratamento anti-rugas. Sem contar que os cabelos... nem o Doni Boca de Porco ia resolver! ;)

8:39 AM  
Blogger Palpiteira said...

Parabéns! Adorei seu texto. Ao contrário de vc, não tive vontade de chorar, mas de viver mais, de me entregar mais ao que eu gosto de fazer, uma vontade enorme de ser feliz como ele foi. Obrigada, Flávio. Isso é mais que um texto, é um presente. Beijo.

10:51 PM  
Blogger Flávio said...

Palpi, já reparou como, às vzs, o choro libera exatamente essa vontade de crescer, de viver mais, de ser mais feliz? É como se a gente chorasse de alegria ou esperança, nesse momento de descoberta. :) Brigado pela opinião, viu?

10:49 AM  

Postar um comentário

<< Home