ATAQUE DE NOSTALGIA
OK, talvez seja apenas um saudosismo besta. A verdade é que, aos 58 anos, eu provavelmente não sairia de casa para ir ao carnaval, nem que fosse como no meu tempo.
Mas não posso evitar uma sensação de perda. E a impressão de que estamos abadonando uma grande parte da nossa cultura. Ou talvez fosse mais exato dizer: substituindo-a por outra cultura.
No meu tempo, o carnaval aqui na Bahia era mais uma festa em clubes. A gente ia para a Avenida, durante o dia, apenas para zoar com a galera ou paquerar as meninas; uma espécie de aperitivo, se é que me entendem.
À noite, de banho tomado, vestia a fantasia ou o short e a camiseta e ia para o clube. Aí, é que rolava mesmo; entre cuba-libres ou doses de conhaque (a depender da grana), a gente brincava até o dia raiar, ao som daquelas músicas de antigamente.
E que músicas! Bandeira Branca, Máscara Negra, A Noite é Linda, ou as mais animadas: Corre Corre Lambretinha, Índio quer Apito, Pó de Mico e muitas outras. A verdade é que, animadas ou não, as músicas eram mais lentas do que hoje; dava pra revezar o sambão com uma dança bem agarradinho.
Muitas das letras eram bem românticas; isso também facilitava e era mais fácil a gente se armar. Muitos namoros começavam no carnaval; é bem verdade que tantos outros acabavam, mas isso é outra história. Como naquela famosa música Até Quarta-Feira.
Também na Avenida era diferente. Não havia Trio Elétrico e o som dependia dos blocos, que não desfilavam todos na mesma hora. Assim, quando um bloco passava o povão (que não tinha dinheiro pra clube) aproveitava pra sambar e muitos acompanhavam. Tendo passado o bloco, voltava a quietude, até que o próximo chegasse.
Na verdade, eu vi nascer o Trio Elétrico. Por coincidência, morava perto do lugar onde ele foi criado: uma vila humilde, de casas pequeninas. Ainda me lembro da surpresa, quando vi pela primeira vez na rua aquele carro antigo (se não me engano, um Citroen ou Ford), preto, sem capota, e dentro dele quatro músicos folgazões tocando as suas guitarras; daquela primeira vez, apenas a garotada acompanhou o cortejo.
Hoje, os Trios Elétricos são quase transatlânticos sobre rodas: palcos, camarotes, o escambau. Os artistas mais famosos disputam, para desfilar em cima deles; atrações mundiais, como Bono e até um DJ inglês tocam para o povo dançar. E eu pergunto: onde fica a festa do povo?
Blocos, camarotes, tudo custa uma grana; tanto, que o pagamento é dividido em carnês. A alternativa é pular de pipoca, entre a multidão, sem nenhuma segurança; arriscando a ser roubado ou levar uma porrada a qualquer instante. Eu, que curtia tanto o carnaval, hoje fico apreensivo quando meus filhos vão “brincar”; para mim, não é brincadeira... é guerra, mesmo!
O carnaval do Rio, hoje, é apenas o desfile das escolas de samba; uma festa de elite, que o povão apenas assiste, como um jogo de futebol. O de São Paulo, idem idem na mesma data; O carnaval da Bahia (exagero à parte) é quase como fazer um piquenique no Iraque.
Acabaram as fantasias, as mortalhas, as máscaras; a lança-perfume é droga, sujeita à apreensão. As músicas perderam o romantismo. O nosso carnaval, hoje, é um mero espetáculo folclórico, para o turista ver. Ou para alguns descarregarem a agressividade reprimida no resto do ano.
Acabou o Carnaval. Não há mais espaço, nem romantismo, para Arlequim chorar pelo amor da Colombina...
(Ilustração: Paulinho Couto)
14 Comments:
Caramba!!! Pensamos a mesma coisa... tivemos a mesma saudade...
Tal qual o confete... pedacinho colorido de saudade, ai, ai ai.. ao rever a fantasia que fiz, confete confesso que chorei!...
Pois é... Ainda bem que as lembranças ficam e tem gente como você, que consegue colocar em letras o que a gente pensa e sente!
Amei o texto!
Confete, serpentina, o tubinho dourado do lança-perfume...
Pois é, Lourdinha, o tempo passa mas as lembranças ficam. E sempre é gostoso sentir saudade... :)
DEPOIS QUE O VISUAL VIROU QUESITO....
como diria Beth Carvalho...
e depois que Clovis Bornay e Evandro Castro Lima viraram purpurina, não tem mais aqueles desfiles de fantasias no Hotel Glória: "Assurbanipal: apogeu e queda do Império Etrusco"...
Serbon, foi realmente outra coisa que acabou e faz falta. Trejeitos à parte, aquele desfile valia pelo luxo e pela beleza das fantasias. É o ponto: acabou o romantismo...
Rapaz, eu queria era ter participado desse Carnaval aí que o senhor falou... Mas só de ler o texto, já me senti um pouco menos ressentido.
Um grande abraço.
Adorei o texto, mas existe um aspecto do carnaval que me deixa ainda mais indignado: a exclusão. O povo realmente se espreme entre blocos e camarotes e fica impossível reprimir a violência e a revolta gerada pala desigualdade social. O carnaval da Bahia é uma farsa que precisa ser desmascarada para o bem do povo baiano.
P.S.: Outra coisa que me deixa fulo da vida é quando alguém usa uma ilustração antiga que me causa vergonha, mas isso a gente resolve pessoalmente, como se resolvem os problemas na avenida. Beijão, velho.
Paulo, realmente era gostoso; embora seja possível que a minha nostalgia realce as suas cores. E não desanime... acredito que ainda exista coisa parecida, em alguma cidade menor. Pelo menos, quero crer nisso! :) Abração, valeu a visita!
Paulinho, a exclusão realmente é uma vergonha. E o pior é que o povo já se acostumou a ser tratado assim.Se não me engano, começou com Portugal. :) Qt às ilustrações antigas, fazer o que, se meu ilustrador é muito ocupado e não me arranja novas? Mas aquela é boa, sim! ;) Abração
Li várias vezes o texto, talvez tentando recordar lembranças de carnavais da minha infância, quando meu pai encostava o carro, se lembro bem um "ópeo", (sei lá como era mesmo), na Praça da Piedade e com meus irmãos ficávamos em cima dele vendo o desfile dos blocos animados pelas charangas. Haviam muitos mascarados, (que morria de medo), serpentinas e confetes lançados dos carros alegóricos. Alguns clubes carnavalescos me chamavam atenção pelo brilho e animação: Mercadores de Bagdá, Os inocentes, Cavalheiros da Liberdade.
Alguns anos depois vieram os blocos de trio e dessa época lembro muito mais, pois, tenho boas recordações. Quem não lembra do charme dos Internacionais na sua fase áurea? Dos Filhos de Oligo, com suas odaliscas dançando em cima do trio? Hum!!! Como é bom recordar...Olha só, eu era uma delas.
Seu ataque de nostalgia conseguiu nos contagiar. Peguei carona na sua viagem e fiquei feliz por lembrar, que apesar de tudo, aconteceram momentos que fizeram a vida valer a pena.
Peguei um pouco deste carnaval que você descreveu. Fica, realmente, uma grande saudade...
Dos desfiles antológicos do Clóvis Bornay, às vezes surgiam fantasias de nomes fantásticos, como "Esplendor multicromático de um imperador oriental num dia qualquer", que ele descrevia ser uma obra que aproveita a dispersão, refração, reflexão, interferência e absorção da luz, abusa do multicolorido etéreo, com traços fluidos e melífluos, integrando a incerteza do amanhecer com a pujança de um entardecer dourado.
A combinação do vermelho-sangue e do verde-piscina produziu um amarelo volúvel que obrigou a um fundo escuro, sufocante e ameaçador, entremeado de lantejoulas lançadas ao léu.
E por aí vai...
Pois é, anônimo (ou melhor, odalisca anônima:). Corujas, Internacionais e tantos outros. Dos Filhos de Oligo, eu confesso que não lembro, mas qualquer bloco que coloque belas odaliscas em cima do Trio merece minha solidariedade e meu aplauso.;) Saudade daqueles carnavais!
Permanganato, é por aí mesmo. Lembro-me que as fantasias tinham nomes pomposos e eram divididas em dois grupos: Luxo e Originalidade. Fomos privilegiados, ao viver pelo menos um pouco daqueles carnavais!
Mandou muito bem, Mestre Flávio.
Eu não sabia que o carnaval da Bahia - a terra do axé - um dia foi parecido com aquele do interior de São Paulo, de salão, movido a lança-perfume, corneta e surdo.
Antigamente eram as marchinhas, sacanas como só, e hoje é axé pra todo lado. Até funk carioca já ouvi neste carnaval.
Bons tempos, os das marchinhas, que não voltam mais.
Realmente, Dom Gustavo, é preciso ter vivido aqueles carnavais, para entender a saudade. Talvez esta seja uma das razões pelas quais não gosto do axé! Lá se foi o romantismo daquelas marchinhas, e toda a graça dos duplos sentidos de algumas, como "A Cabeleira do Zezé" ou "Índio quer apito". Lá se foi o encanto de de borrifar o lança-perfume na odalisca que passava, ou cobri-la de confetes...
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